A crise do capitalismo oligárquico e as incertezas do pensamento democrático no Brasil

A crise do capitalismo oligárquico e as incertezas do pensamento democrático no Brasil

Por Paulo Henrique Martins
Ex Presidente ALAS
Universade Federal de Pernambuco (UFPE)
A crise que vive o Brasil, no atual momento, é econômica, política e moral. Podemos falar de uma crise sistêmica na medida em que há recorrência entre estes três fatores o que é agravado pela deterioração das utopias e ideologias políticas. Neste sentido, a crise também é ideológica, o que contribui para a degradação dos mecanismos tradicionais de formação da opinião pública por um lado, e para a disseminação de um pensamento vulgar, inspirado pelos ruídos da conjuntura ou pelos interesses corporativos que buscam, através da mídia, manipular a opinião pública comum e especializada.
A crise coloca, então, problemas teóricos e práticos importantes que têm relação com a desregulamentação das instituições republicanas e democráticas. Mas a crise revela, igualmente, as dificuldades crescentes do pensamento crítico de entender os fundamentos do capitalismo oligárquico e de encontrar os caminhos adequados para a fundação de um regime republicano democrático que seja pluralista, participativo e igualitário. As peculiaridades desta crise sistêmica colocam desafios relevantes para os intelectuais acadêmicos, visto que os seus marcos teóricos e interpretativos usuais se mostram inadequados para responder aos desafios de explicação postos pela realidade factual. Como, em geral, tais marcos interpretativos foram pensados desde outras experiências históricas, sobretudo aquela europeia, seus usos para explicar o contexto brasileiro, em particular, e latino-americano, em geral, são insuficientes (Lander, 2003).
Para contribuir para o debate acadêmico que visa esclarecer o contexto da crise brasileira apontando algumas pistas de ação vamos dividir esta reflexão em dois pontos: no primeiro, vamos aprofundar o entendimento da crise do sistema de dominação; depois, vamos buscar compreender os dilemas do pensamento crítico e democrático, o que é fundamental para reorganizar as utopias e as linhas de ação dos movimentos sociais, associativos e comunitários que lutam pela democratização do sistema de poder.
Crise do sistema de poder
O entendimento da crise brasileira como sendo ao mesmo tempo econômica, política e moral converge para uma crise mais ampla do próprio sistema de poder e de sua herança colonial, centralizada e autoritária. Como outros países da América Latina, o poder estatal sempre teve uma base centralizada que, na perspectiva colonial, aparecia como sendo necessária para organizar as atividades econômicas exportadoras, a atividade fiscal e monetária e o disciplinamento das populações vivendo nos territórios dos estados nacionais. No século XX, esta base centralizada do poder estatal foi atualizada com as reformas do aparelho estatal e com as novas políticas fiscais, econômicas e sociais. Os modelos nacional-desenvolvimentistas são frutos destas iniciativas de modernização do aparelho administrativo, fiscal e jurídico sem tocar fundamentalmente nos dispositivos autoritários de controle das populações que, por seu lado, se mobilizaram permanentemente contra a lógica excludente, mandonista e seletiva da dominação oligárquica.
Entre os anos oitenta e noventa do século XX, verificou-se o envelhecimento dos aparelhos burocrático-administrativos dos estados desenvolvimentistas o que foi, de certa maneira, acelerado pela influência do neoliberalismo e com a disseminação de ideias privatistas e mercantilistas. A expansão do neoliberalismo na América Latina e Brasil no final do século XX e neste século XXI contribuiu para ampliar os processos de desigualdade social e de concentração de renda em contextos de maior vulnerabilidade das sociedades nacionais regionais no interior da nova ordem capitalista mundial e da presença da China como importante parceiro comercial dos países da região. O neoliberalismo se aproveitou das tensões tradicionais entre Estado e Sociedade Civil, para atacar o centralismo estatal e questionar a efetividade gerencial das empresas estatais. Mas o ataque ao Estado não visava romper com o conservadorismo oligárquico cuja lógica patrimonialista de reprodução histórica sempre subverte os mecanismos tradicionais de organização do trabalho assalariado. O ataque ao Estado desenvolvimentista tinha apenas o objetivo de rearticular as alianças das oligarquias nacionais com o capital internacional, atualizando o controle do aparelho estatal dentro da nova ordem capitalista mundial.
A ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, nas eleições de 2002, levando Luis Inácio da Silva, Lula, ao cargo de presidente da República, pareceu acenar para uma mudança significativa do sistema de poder, que neste momento apresentava redes de dominação mais complexas devido às pressões do novo imperialismo neoliberal que foi amplificado com a presença chinesa. Se a vitória de Lula entusiasmou os movimentos sociais e sindicais ela também gerava grandes receios nas elites oligárquicas econômicas, financeiras e políticas. Chegando ao poder, o PT constatou de imediato a força do pacto conservador e buscou estratégias políticas eficazes de modernização do Brasil respondendo ao mesmo tempo aos anseios populares e preservando as alianças oportunas com as oligarquias dominantes. Assim, Lula se empenhou diretamente na organização de um sistema de alianças amplas envolvendo empresários e trabalhadores em torno de um projeto neo-desenvolvimentista que favorecesse a expansão do mercado interno de bens de consumo duráveis e semi-duráveis sobretudo nos ramos do automotor, dos eletrodomésticos e dos alimentos industrializados com produção de emprego e distribuição de renda. O neo-desenvolvimentismo, ao contrário do nacional-desenvolvimentismo, passou a relativizar o peso excessivo do Estado como agente de modernização assim como recorreu menos aos apelos nacionalistas como ideologia de legitimação do poder dominante. Neste contexto mais complexo de aliança necessária com as forças do mercado e das grandes empresas econômicas multinacionais, o neodesenvolvimentismo acenava para um processo de modernização econômica que assegurasse simultaneamente os interesses dos setores econômicos e dos populares.
Consideravam ainda os intelectuais economistas do PT que o fortalecimento da presença das empresas e bancos estatais como Petrobrás, BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Banco do Brasil e Caixa Econômica no financiamento a projetos empresariais controlados pela “burguesia nacional” permitiria viabilizar o sucesso do novo modelo neodesenvolvimentista. O pacto de sustentação deste novo modelo não mexia com as oligarquias financeiras e exportadoras, mas, acreditava-se, ele iria viabilizar o crescimento do mercado interno e elevar o poder de consumo das  populações desfavorecidas tanto pelo aumento salarial progressivo como por políticas assistencialistas como aquela do bolsa família. Em suma, a ampliação do mercado interno deixaria a economia nacional menos vulnerável aos efeitos externos gerados pelo capitalismo global, fortalecendo o empresariado nacional. Também acalmaria as pressões sindicalistas, o que foi assegurado pelos crescentes aumentos salariais gerados pela expansão da indústria voltada para o mercado interno.
Mas as tentativas do PT de impor um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil não foi suficiente para romper com a lógica oligárquica do poder e, aos poucos, foi ocorrendo progressivo esvaziamento das lutas por redemocratização e da participação social nas decisões políticas. Nos últimos anos, no Brasil, apesar das mobilizações importantes produzidas pelos partidos de esquerda e pelas organizações nacionais e internacionais implicadas com os processos democráticos, conheceu uma apropriação substantiva dos mecanismos de representação por elementos oriundos dos setores oligárquicos, empresariais e financeiros. O financiamento privado das campanhas eleitorais inviabilizou grande parte das candidaturas populares, abrindo o caminho paras os políticos ricos ou para aqueles representando interesses corporativistas e empresariais. Ou seja, no caso brasileiro, os ventos da redemocratização iniciado com o fim do regime militar nos anos 80, com os avanços dos movimentos sociais, urbanos e rurais, e com a chegada do PT ao poder, não foram suficientes para ampliar as esferas da participação democrática e quebrar a lógica perversa da modernização conservadora oligárquica.
O fracasso do modelo neodesenvolvimentista projetado pelo PT para reorganizar a modernização brasileira apresenta várias razões: a “burguesia nacional” não tinha compromissos com a implantação de um modelo de desenvolvimento nacionalista, a tecnoburocracia estatal não tinha compromissos com o patrimônio público e nacional e as elites políticas não se viam como representantes de seus eleitores, mas apenas como zelosos defensores dos interesses pessoais ou corporativos dos que financiam as suas campanhas eleitorais. Num município do interior do Brasil um político foi questionado por estar adotando medidas que iam de encontro aos interesses da população. E o político respondeu: “como paguei cada um dos meus votos, então não devo nada a ninguém”.
Por outro lado, o entendimento sindicalista da cidadania muito marcado pela questão salarial limitou  a aplicação das políticas públicas sobretudo ao financiamento de bens de consumo das populações mais pobres. A lógica sindicalista não contempla o fato que a cidadania é um constructo conceitual mais complexo que o mero financiamento do consumo, implicando sobretudo a construção moral de uma cultura cívica e solidaria em torno dos bens comuns nas esferas da vida comunitária e dos espaços das cidades. A leitura sindical da cidadania levou, logo, os governos do PT a negligenciarem as perspectivas de uso das políticas públicas e sociais para favorecer o espírito associativo local e a consciência coletiva dos direitos de cidadania. Ao contrário, a ênfase das políticas assistencialistas do PT no financiamento do consumo popular se fundava na crença de que o mero aumento das condições materiais de vida seria suficiente para assegurar a cidadania democrática.
De modo geral, podemos propor que a visão sindicalista do PT contribuiu involuntariamente para a disseminação da lógica utilitarista e mercantilista no interior do sistema de poder e também nas bases populares. A ganância pelos recursos de empresas estatais contribuiu para corromper os quadros técnicos e políticos dirigentes e a ênfase no consumismo ajudou a desmobilizar de modo significativo a base popular que deveria justamente ser mobilizada politicamente para assegurar as mudanças democráticas esperadas.
A crise atual que vive o PT e a perda de legitimidade do governo da presidente Dilma Russeff eleita em 2014 é apenas o ápice da falência deste modelo neodesenvolvimentista pensado sob a ótica de uma expansão econômica nacional sustentada por uma ampla aliança reunindo desde os capitalistas financeiros e oligárquicos até os movimentos sindicais, sociais e as massas excluídas. A crise revela também, como assinalamos, um entendimento restrito dos direitos de cidadania que foram reduzidos à mera expressão material de ações de financiamento do consumo das populações vulneráveis.
Pensando esta crise sistêmica numa perspectiva histórica podemos propor que ela revela um fato recorrente que é próprio das sociedades pós-coloniais da América Latina. Tal fato tem a ver com os dilemas entre, por um lado, as pressões para implantação de regimes republicanos de base oligárquica, organizados a partir de um sistema político excludente e limitado aos jogos das elites e, por outro, as lutas pela implantação de regimes republicanos democráticos, plurais e aberto, que assegurem ampla participação social nas decisões fundamentais sobre apropriação, distribuição e usos das riquezas coletivas.
Por outro lado, guardando as distâncias de tempo e de complexidade dos momentos históricos, observamos que a crise de regulamentação do sistema político e estatal sempre aciona um terceiro agente – além das oligarquias e setores populares – que representa os interesses corporativos dentro do aparelho estatal e que se atribui a missão de garantia física e moral da segurança territorial, da ordem constitucional e do funcionamento dos aparatos estatais. Na crise de 1930, chamada crise da “República Velha”, os protagonistas deste programa de proteção da ordem nacional foram os chamados “tenentistas”, jovens oficiais das Forças Armadas que tomaram para si as responsabilidades de reorganização das instituições do poder que estavam corrompidas pelo jogo oligárquico. Na crise dos anos sessenta que redundou em sangrenta ditadura militar mais uma vez os oficiais das Forças Armadas tomaram para si as responsabilidades de guardiãos privilegiados do poder nacional que estaria hipoteticamente ameaçado – o que não era verdade – pelos avanços dos movimentos democráticos.
No momento presente, sobretudo após a Constituição de 1988 que assegurou novas atribuições ao poder judiciário, verifica-se que este papel de guardião da ordem nacional ameaçada passou a ser exercida pelos juízes, em diversas instâncias decisórias. Neste sentido, é de se destacar que o Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil tem, hoje, poderes de punição criminal e com direitos de intervir em todas as esferas da vida social, econômica e política desde que os juízes entendam haver ameaças à ordem constitucional. Há, de fato, um processo de judicialização da política que é estimulado à medida que se fazem evidentes as práticas de corrupção das empresas estatais, e dos aparelhos executivo e legislativo. Como a crise não é somente econômica e política com fortes conotações morais, a judicialização da política avança na direção de uma judicialização geral do poder ampliando a presença do judiciário como guardião da ordem nacional. Há um aspecto negativo neste fenômeno na medida em que este processo de judicialização do poder reflete predominantemente uma mobilização corporativa dentro do aparelho estatal não espelhando claramente as demandas sociais mais profundas. Basta observar que o ativismo do judiciário não toca em temas fundamentais sobre a questão agrária e sobre a apropriação selvagem pelo sistema financeiro dos recursos econômicos, ameaçando a estabilidade da massa de assalariados. Mas há um aspecto positivo na judicialização do poder e que diz respeito ao fato que aparecendo o Judiciário como guardião maior da carta constitucional, há o desestimulo a ações golpistas envolvendo oligarquias, empresários e setores das Forças Armadas como aconteceu em períodos anteriores da história da República no Brasil.
Dilemas do pensamento democrático
Tudo que foi dito até aqui sugere que no caso brasileiro o provável ganhador das dificuldades do modelo neodesenvolvimentista articulado pelo PT não foram os trabalhadores, mas a própria modernização conservadora que foi atualizada através de alianças envolvendo as oligarquias tradicionais e as novas oligarquias empresariais, políticas e burocráticas. Porém, há outros aspectos importantes relacionados não à produção material da crise mas à sua interpretação. Trata-se de entender as dificuldades do pensamento crítico de atualizar suas narrativas analíticas sobre a crise sistêmica. Em particular, de compreender as causas, consequências e riscos do processo de desregulamentação da construção republicana que legitima e legaliza o edifício político e institucional e que valoriza nominalmente as lutas por direitos universais de cidadania e de inclusão social.
Quando falamos de pensamento crítico não estamos nos referindo apenas ao trabalho acadêmico, mas também aquelas atividades intelectuais realizadas pelos sindicatos e associações, pelas igrejas e partidos e pelos movimentos sociais, em geral. Porém, no interior deste conjunto que denominamos de pensamento crítico se destaca o pensamento acadêmico, na medida em que ele é o depositário de uma memória intelectual relevante sobre o projeto da modernidade e da democracia e também das lutas anti-coloniais que se expandiram no Sul Global, ao longo do século XX.  Os intelectuais acadêmicos têm sido conselheiros diretos e indiretos estratégicos tanto de instituições populares e operárias como de entidades empresariais, políticas e burocráticas, pois nas universidades passam muitos dos novos quadros dirigentes. Eles também foram peças fundamentais para a concepção dos modelos nacional-desenvolvimentistas, ajudando na modernização do aparelho estatal e nas implementações de reformas fiscais, financeiras, monetárias e econômicas e de políticas públicas e sociais.
Mas o pensamento democrático, acadêmico e ativista, no Brasil, avança com muitas dificuldades para propor novas estratégias de ação e de enfrentamento, as quais são fundamentais para orientar as mobilizações democráticas. Neste sentido, é importante se levar em conta as dificuldades de construção de pensamentos democráticos liberadores nas sociedades pós-coloniais que deem conta simultaneamente dos avanços das lutas transnacionais e das particularidades destes sistemas nacionais pós-coloniais e pós-escravistas. O assunto não é novidade, mas continua atual. Como explica Emir Sader, a esquerda latino-americana conhece o desafio de repensar suas estratégias na medida em que as antigas estratégias da esquerda comandadas pelos partidos socialistas e comunistas, pelos movimentos nacionalistas e pelos grupos guerrilheiros, são insuficientes para responder aos desafios de novas propostas sugeridas pelos processos políticos (Sader, 2009, p.93). As novas estratégias exigem reflexão mais profunda sobre o valor da esfera pública e republicana para o fortalecimento da democracia a qual não se circunscreve aos embates da Sociedade Civil contra o Estado que marcou a época do desenvolvimentismo. A mercantilização da sociedade como um todo deslocou esta tensão clássica da época do desenvolvimentismo, colocando novos desafios teóricos e práticos para os movimentos sociais e comunitários.
O pensamento democrático necessita aprofundar a crítica pós-colonial e descolonial desconstruindo racionalmente as narrativas do poder e ajudando a liberação política e expressiva das manifestações sociais e culturais que valorizem o bem público e comum  assim como as lutas por direitos coletivos universais que somente se afirmam dentro de um republicanismo plural. Nesta perspectiva, entendo haver algumas linhas de reflexões importantes a serem consideradas pelos intelectuais acadêmicos e ativistas: a da desconstrução da ontologia desenvolvimentista fundada na modernização conservadora oligárquica, a do aprofundamento das condições materiais e simbólicas de emergência de direitos e instituições republicanas  e a do entendimento das condições históricas particulares e necessárias à emergência da democracia participativa e igualitária. Não há possibilidades práticas de se aprofundar, aqui, cada um destes temas, mas podemos ao menos traçar algumas pistas de reflexão para um debate mais amplo:

  1. A crítica ontológica do desenvolvimento tem relação com algo que M. Merleau-Ponty já denunciava a partir dos eventos trágicos da segunda grande guerra, que foi o declínio da “Filosofia do Progresso”: “aquilo que por séculos apareceu aos olhos dos homens com a solidez de um sol se revela frágil: o que era nosso horizonte predestinado se tornou perspectiva ilusória” (Merleau-Ponty, 1982, p.146). Esta é, a meu ver, uma reflexão predestinada sobre os destinos funestos do desenvolvimento capitalista e sobre a falácia da matriz temporal que sustenta sua crença sobre um futuro de abundância econômica generalizada. Tal falácia somente tem ressonância ideológica quando coloca a questão do tempo linear e do progresso como um dogma não refutável. Mas, aos poucos, a ilusão dos modelos de desenvolvimento como projetos de redenção social e humana vão se desfazendo. Como esclarece o sociólogo boliviano Luis Tapia o paradigma do desenvolvimento somente se afirmou com a substituição das noções de tempos cíclicos tradicionais por uma noção de tempo histórica progressiva, como uma “flecha do tempo”, e pela associação deste tempo linear com um entendimento econômico da realidade. Mas no momento presente, explica ele, é urgente se romper com a associação entre desenvolvimento e crescimento econômico sugerido pelo tempo linear para revalorizar através dos tempos cíclicos que revitalizam as memórias, a relação entre desenvolvimento e democracia (Tapia, 2011, p.21 y 35). Assim, há um aspecto messiânico nesta concepção de desenvolvimento como progresso econômico e social, na medida em que ela considera arbitrariamente haver um futuro de esperança e comunhão. Mas os tempos atuais estão desfazendo esta ilusão e mostrando o caráter da tragédia humana gerado pela insistência na ilusão do futuro. Este assunto vem sendo tratado igualmente por autores como Boaventura Santos (2008, p. 97-105) que sugere uma crítica à razão metonímica, que propõe uma perspectiva lógica de totalidade do mundo baseada no ocidentalismo. Contra esta razão metonímica que desvaloriza outras totalidades e experiências o autor propõe um paradigma que contribua para dilatar o presente, para resgatar as ausências e desperdícios que estão neste presente. Está inscrita nestas e outras críticas relativas à filosofia do progresso ocidental a ideia que a questão da produção material e imaterial do bem estar social não pode ser resolvida nem ontem nem amanhã, somente hoje. A perspectiva de um mundo pós-desenvolvimentista deve ser resultado de pactos entre os homens no momento em que vivemos e decidimos aqui e agora e em coletivo as condições materiais e imateriais de nossas vidas, abandonando as meras especulações teológicas (Martins, Araújo Silva, Souza Leão e Freire Lira, 2015).
  2. A crítica ontológica do republicanismo tem que enfrentar o fato que o ideal republicano pós-escravista adotado na América Latina e no Brasil foi a fórmula adequada para articular alianças entre oligarquias rurais, militares e forças anti-escravistas dentro de um processo de modernização conservadora ampliado. Neste sentido, há uma contradição evidente entre o caráter liberal dos modelos republicanos adotados e inspirados nas experiências dos Estados Unidos e da França e a realidade dos modelos republicanos fundados sobre os poderes oligárquicos de natureza colonial existentes na América Latina. Tal contradição entre forma e conteúdo se revelou desde cedo nas lutas políticas envolvendo oligarquias por um lado, e partidos e movimentos de esquerda, por outro, tendo como centro de disputa a questão da organização do poder e do sistema político e eleitoral e a apropriação e distribuição dos recursos coletivos. A análise das peculiaridades de emergência de instituições republicanas nestes contextos pós-escravistas e oligárquicos explica as tensões permanentes dentro do próprio aparelho estatal entre os defensores de uma lógica oligárquica voltada para a apropriação privada e pessoal dos recursos estatais, por um lado, e as corporações defensoras do ideal jurídico-constitucional do regime republicano, por outro. A segurança do regime republicano que é ameaçada pela permanente tentativa de assalto do poder estatal pelas oligarquias desperta aquelas corporações que são mais sensíveis ao exercício do papel de guardiões da ordem administrativa e territorial, como são os casos dos militares e juízes. O pensamento crítico tem que considerar, logo, que as ideias de direita e esquerda formatadas no calor da revolução francesa conhece inflexões importantes no caso latino-americano e brasileiro devido aos modos como o republicanismo se implanta no contexto pós-colonial e pós-escravista. Por isso, nestas sociedades há uma tensão particular que se estabelece entre que está fora do sistema de proteção civil e jurídico e quem está dentro. Isto é uma peculiaridade em sociedades pós-escravistas em que grande parte das populações não teve condições de entrar no mercado de trabalho formal e que não teve acesso aos direitos públicos, cívicos e sociais da cidadania.
  3. A crítica ontológica da democracia se faz a partir das duas críticas anteriores. Por um lado, há que se abandonar as crenças teleológicas num futuro de redenção econômica e social de modo a favorecer entendimentos e práticas mais articuladas com as responsabilidades de gestão social, econômica, política e ambiental do momento presente. Há que se avançar igualmente nas lutas por direitos coletivos e comuns que permitam superar as contradições entre o imaginário privatista oligárquico e capitalista e o imaginário do bem público que inspira a cidadania democrática. Representação e participação são dispositivos importantes da experiência democrática e devem ser articulados a partir de uma luta por cidadania que parta da base social. Há que se entender que os meros dispositivos republicanos de eleição e representação parlamentar não asseguram as condições de existência de um republicanismo democrático popular e plural. Pode simplesmente estar reproduzindo as regras de sobrevivência do poder oligárquico no interior de uma construção jurídico-política que chamamos de republicanismo oligárquico. A democracia começa nos sistemas de vizinhança, dizia Charles Cooley 1992), e a emergência de um “self” coletivo não pode nascer da cultura do consumismo. Somente a partir de um sentimento comum sobre a experiência do viver em coletividade que se estrutura inicialmente nas esferas locais das famílias, dos vizinhos e dos próximos.

 
Algumas ideias para reflexão coletiva
Há muitos outros aspectos a serem discutidos neste momento de crise sistêmica do poder capitalista e oligárquico no Brasil e de mal-estar social generalizado. A desregulamentação das instituições republicanas não se revela apenas pelos sintomas visíveis como queda do PIB (Produto Interno Bruto), aumento da dívida pública, diminuição dos empregos formais, descrédito popular com relação aos governantes, corrupção do aparelho estatal entre outros. A desregulamentação produz, sobretudo, desorganização emocional e afetiva dos indivíduos e grupos sociais fazendo emergir fortes ressentimentos, medo e desesperança coletiva. Os pactos sociais que sustentam as instituições republicanas são ameaçados estruturalmente o que se reflete sobre o aumento da violência urbana e a descrença na política e na democracia.
A sociedade como um todo perde sua capacidade de raciocinar coletivamente a partir de crenças e utopias que foram construídas lentamente através de anos e de vivências coletivas  inscritas nas memórias de lutas e nas manifestações de solidariedade. Neste contexto, as elites oligárquicas manobram para não perder o controle do poder e do sistema político. Enquanto o  pensamento democrático se enfraquece, a mídia  passa a manipular ostensivamente a opinião pública divulgando informações muitas vezes inconsistentes e que apenas ajudam as elites oligárquicas a buscarem restabelecer suas estratégias de dominação.
As estratégias imediatas das oligarquias passam pelas pressões diretas e indiretas pelo impeachment da presidente da república que vão desde as tentativas de implantar regime parlamentarista para dar mais poderes ao congresso nacional que tenta interromper as apurações judiciais sobre crimes de lavagem de dinheiro. As tentativas de implantar este regime parlamentarista aparecem ainda mais absurdas quando se considera que projetos de instalação do vice-presidencialismo foram rechaçados em dois plebiscitos realizados em anos anteriores. Outras estratégias passam pelas pressões para que Dilma Rousseff renuncie a seu mandato passando o cargo para o vice-presidente do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), Michel Temer, que é um partido que vive nas dependências dos recursos do poder. E há ainda aqueles, sobretudo liderados pelo PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), que tentam anular as eleições de 2014. Ambos partidos têm vários membros com processos judiciais de corrupção e tentam neutralizar as investigações judiciais.
A evidência da crise do poder segue em paralelo às dificuldades de emergência de um pensamento democrático que valorize a tradição republicana dos direitos civis, políticos e econômicos e culturais. Um pensamento plural que também se abra a uma utopia pós-republicana que inclua novos direitos emergentes e presentes sobre os usos adequados dos recursos ambientais, sociais e humanos. Considerando as correlações de forças atuais, vemos que a desorganização do Partido dos Trabalhadores e de parte dos partidos de esquerda ocorre no mesmo contexto das tentativas da direita oligárquica de restabelecer seus mecanismos de controle do poder estatal e do sistema político. Mas considerando a complexidade das mobilizações sociais e políticas nos atuais espaços nacionais e transnacionais é difícil que as oligarquias econômicas e políticas possam restabelecer os velhos mecanismos de apropriação dos recursos públicos e estatais sem altos custos políticos. Os processos judiciais contra práticas de corrupção de empresários, políticos e burocratas avançaram para limites não esperados pelas oligarquias. A corrupção deixou de ser um mecanismo de rotina das elites na operação de privatização do bem comum e passou a ser vista como uma prática imoral por grande parte da sociedade. Certamente, o interesse popular pela moralização do sistema estatal e político tanto pode favorecer saídas a direita como à esquerda. Há que se observar os desdobramentos do processo judicial e político.
E como fica o pensamento democrático que deveria orientar os movimentos sociais e populares neste contexto de crise republicana? Por um lado, há de se ressaltar que o pensamento crítico vem perdendo terreno importante na formação da opinião publica politizada na medida em que a mídia mantém os setores populares sobre intenso bombardeio de informações conjunturais pouco consistentes e também de boatos sem fundamentos na realidade política. Por outro, lado há que se reconhecer que o pensamento democrático se encontra numa encruzilhada existencial na medida em que não consegue reconstruir utopias liberadoras. Aquelas utopias das esquerdas no século XX articuladas através dos partidos comunistas e dos movimentos nacionalistas e guerrilhas que eram inspiradas ideologicamente nas experiências das esquerdas europeias, demonstraram ser ineficazes para enfrentar o poder oligárquico, sobretudo na sua fase de internacionalização e de aliança orgânica com o capitalismo internacional. Assim, o desafio para o pensamento democrático nos contextos das sociedades pós-coloniais é de reinventar suas ideias de sociedades justas e igualitárias.
O pensamento descolonial tem oferecido grande contribuição na América Llatina ao ressaltar a complexidade da vida social e que as alianças políticas inovadoras não podem se limitar a repetir as ideias eurocêntricas (Lander, 2003) e ao entendimento das lutas de classes como “motor da história”, devendo incorporar as diversidades identitárias que passam pelas questões de etnicidade, de gênero, de religiosidade e de ambientalismo . Mas, no Brasil, infelizmente, a critica descolonial ainda tem aceitação limitada no mundo acadêmico e nos movimentos sociais e populares politizados, o que contribui para tornar mais árduo a difusão de atividades intelectuais voltadas para a desconstrução do poder e do saber.
Por onde caminhar? Retomando ao que sugerimos anteriormente sobre os desafios de se repensar as ontologias do desenvolvimento, da república e da democracia, é importante que o pensamento democrático se volte para examinar com mais profundidade o elemento motivador central que mobiliza os setores populares durante todo o século XX. Este elemento são as lutas pelos direitos de cidadania que separam e unem os que exercitam a vida republicana e os que estão fora da mesma. Mas não se trata aqui de um republicanismo liberal ou oligárquico, mas daquele republicanismo democrático que parte do principio de “todos os direitos para todos” que vem inspirando as lutas democráticas de numerosas associações nacionais e internacionais, como lembra P. Chanial (2004: 58). Se trata de propor a cidadania democrática como auto-governo fundados em direitos coletivos efetivos e plurais, gerados de amplas solidariedades cívicas e políticas nos âmbitos locais, regionais, nacionais e transnacionais. Esta perspectiva não é mero ideal mas vem demonstrando sua força e pertinência quando analisamos a experiência boliviana no momento presente. A utopia do “bien vivir” tem demonstrado consistência ideológica para liberar forças anti-capitalistas (Farah y Gil, 2012). Em paralelo, a busca por novas utopias democratizantes também vem se espalhando em outros lugares como é revelado pelo movimento convivialista que tem importante difusão na França e outros países europeus neste momento (Manifesto Convivialista, 2013)
Finalmente, o processo de redemocratização do Brasil deve orientar um novo modo de conceber e exercitar uma ideia de esquerda democrática que seja adequada a estas realidades sociais e comunitárias que vivem o embate direto entre modelos oligárquicos e liberais de república e um modelo democrático e popular de república. A refundação do pensamento democrático de esquerda deve, pois, mobilizar a sociedade organizada para repensar os direitos coletivos fundamentais á vida. Mas o sucesso de tal empresa não depende mais simplesmente de mobilizações sociais, populares e comunitárias dentro dos territórios administrativos de cada estado nacional da América Latina. É importante que as lutas locais e nacionais sejam articuladas por redes de solidariedade mais amplas reunindo todos que sonham por um mundo mais solidário, igualitário e justo.
 
Referências:
Caillé e all. (2013) Manifesto convivialista. Declaração de interdependência. São Paulo: Annablume.
Chanial, P. (2004) Todos direitos por todos e para todos: Cidadania, solidariedade social e sociedade civil num mundo globalizado In: P.H. Martins e B. F. Nunes (Orgs.) A nova ordem social: Perspectivas da solidariedade contemporânea. Brasília: Paralelo 15.
Coolley, C. 1992) On self and social organization. Chicago and London: The University of Chicago Press.
Farah y Gil, M. (2012) Modernidades alternativas: uma discusión desde Bolívia In: P.H. Martins e C. Rodrigues (orgs.) Fronteras abertas da América Latina: Diálogo na ALAS. Recife: Editora Universitária da UFPE/ALAS.
Lander, E. (2003) La colonialidad del saber: Eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso.
Martins, P.H., Araújo Silva, M., Souza Leão, E. e Freire Lira, B. (2015) Guia do Pós-Desenvolvimento e Novos Horizontes Utópicos. Recife: Editora da UFPE/Instituto da América Latina.
Merleau-Ponty, M. (1982) Résumé des cours. Paris: Gallimard.
Sader, E. (2009) A nova toupeira. Os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo Editorial.
Santos, B.S. (2008) A gramática do tempo: para uma nova cultura politica. 2ª. Edição, São Pasulo: Cortez Editora.
Tapia, L. 2011) El tiempo histórico del desarrollo In: F. Wanderley (Coord.) El desarrollo en question. Reflexiones desde América Latina. La Paz: CIDES-UMSA/Oxfam

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