O desmanche da democracia que queríamos para o Brasil

O desmanche da democracia que queríamos para o Brasil

Descargar en PDF


Paulo Henrique Martins (pahem@terra.com.br)

As incertezas políticas do Brasil são, igualmente, aquelas de todos países latino-americanos que investiram nos processos de democratização de suas sociedades nas últimas décadas, tendo como pano de fundo a intenção de não mais retornar aos períodos ditatoriais. O caso brasileiro é relevante e causa estupor na medida em que ele coloca de forma flagrante os limites da democracia que queríamos, por um lado, e as perspectivas tenebrosas de um processo de democracia oligárquica voltado para o favorecimento das elites econômico-financeiras, políticas e burocráticas, por outro.

A democracia que queríamos, nós da esquerda, era, sobretudo, uma democracia participativa na qual a representação expressasse os anseios da maioria da população com relação a um sistema de poder descentralizado e transparente, favorecendo a inclusão social, a igualdade de acesso aos bens coletivos e a liberdade de expressão. Mas o regime democrático que conhecemos e que foi construído desde 1984, quando se realizaram pela primeira vez eleições livres no país, marcando o fim do período ditatorial, não responde a estas características ambicionadas pela esquerda democrática. Aos poucos, foi se restabelecendo os velhos mecanismos da democracia oligárquica pela qual os direitos de representação das elites não estão articulados com os direitos de participação da população em geral, sobretudo as parcelas mais desassistidas, no que diz respeito as decisões relativas ao exercício pleno da cidadania. Assim, há em curso o desmanche de uma democracia que queríamos que fosse ampla e inclusiva.

Na democracia oligárquica a representação se organiza a partir de financiamentos privados gerados por riquezas pessoais, pelo poder de terceiros detentores de riquezas patrimoniais ou financeiras que apoiam “seus” candidatos ou por corporações religiosas, como as igrejas pentecostais, que votam cegamente em seus líderes. Estes procedimentos de elitização do regime democrático foram legalizados no Brasil a partir de duas estratégias. Uma delas tem a ver com os dispositivos de recrutamento, seleção e formalização das candidaturas políticas desejosas de concorrer nas eleições parlamentares a partir de listas organizadas pelos partidos e sem sintonia com as demandas concretas e localizadas das comunidades urbanas e rurais. A outra iniciativa se revela pelos procedimentos de elitização desenhados a partir do que se chama de “governo de coalizão”, no qual o exercício da presidência da república e a organização do executivo dependem diretamente das negociações e barganhas envolvendo parlamentares e governo no que diz respeito a distribuições de cargos públicos como ministérios e diretorias de empresas estatais. Tais procedimentos implicam, também, decisões pouco transparentes relativas à distribuição de recursos públicos para investimentos, políticas públicas e manutenção do aparato estatal.

Num contexto político de forte presença popular do presidente da república, como foi o caso de Lula, as pressões das elites políticas conservadoras eram relativamente neutralizadas pelos receios dos parlamentares de perderem o apoio das bases eleitorais e, igualmente, os financiadores de campanha, Isto fortalecia, por conseguinte, a independência do executivo e seu poder de negociação. Diferentemente, nos casos de presidentes da república pouco carismáticos como foram os casos de Fernando Henrique Cardoso e de Dilma Rousseff, a governança permaneceu como uma experiência instável e incerta. Como a elite política conservadora não se sentia ameaçada nas suas práticas eleitorais mesquinhas, as pressões e barganhas pessoais e corporativas dos congressistas sobre o poder executivo eram mais intensas, levando ao impasse do “presidencialismo de coalização” que vemos hoje. Como resultado, os interesses voltados para demandas partidárias, paroquiais e corporativas eliminaram quaisquer perspectivas de organização de ações de planejamento governamental de médio e longo prazo, favorecendo as negociações interpessoais em formato de bazar. A anulação de perspectivas de planejamento de médio e longo prazo voltada para responder as necessidades de promoção da sociedade nacional paralisou o governo Dilma, aumentando a ambição das corporações econômicas e políticas de controlar o  aparelho estatal e assaltar os cofres públicos. A instabilidade política aumentou em nível impensável no ano de 2016 comprometendo as perspectivas de continuidade das conquistas democráticas obtidas ao longo das décadas de oitenta até o momento presente.

A efetivação de um programa de democratização efetivo da vida nacional exigiria, ao contrário, a renúncia dos interesses de alguns em benefício de ações voltadas para proteger a sociedade nacional como um todo. Esta é a condição para se implantar ações mais duradouras e voltadas para geração de emprego e renda, de políticas públicas necessárias à promoção da cidadania igualitária como aquelas de saúde e educação e de melhoria dos serviços de infraestrutura como estradas e saneamento.

A chegada do Partido dos Trabalhadores e de Lula ao poder não foi suficiente para reverter o quadro de hegemonia da democracia oligárquica. Ao contrário. Para gerenciar o poder estatal os dirigentes petistas tiveram que ceder espaços políticos importantes às elites conservadoras e realizar barganhas por cargos e por recursos públicos que terminaram contaminando o programa democrático do PT. Isto levou muitos dirigentes a se afastarem dos ideais éticos inicialmente propugnados pela esquerda democrática simpatizante das lutas dos sindicalistas, sobretudo aqueles da região do ABC paulista onde estão instaladas grandes montadoras de veículos. Com o governo Dilma o processo de descaracterização ideológica e política do PT se agravou, contaminando os programas de ação das esquerdas democráticas que passaram a depender crescentemente do prestígio de Lula para enfrentar a “direitização” do sistema político.

A degradação progressiva das perspectivas de materialização da utopia da democracia participativa ampliada que queríamos resulta deste conjunto de fatores que demarcam o crescimento dos interesses conservadores e mercadológicos, por um lado, e a desvalorização da participação popular e social nas decisões políticas voltadas para atender as demandas das maiorias, sobretudo as mais fragilizadas, por outro. Mas a degradação da utopia democrática não se fez apenas no terreno da política partidária e do assalto ao tesouro estatal. O crescimento do utilitarismo materialista foi também alcançado por ampla campanha ideológica guiada pela mídia conservadora e voltada para estimular o consumo de massa que era entendido como fundamental para apoiar a expansão do setor industrial que também recebeu generosos subsídios mediante isenções fiscais. O resultado destas políticas assistencialistas foi a crescente  despolitização dos setores populares que ficaram hipnotizados pelo consumo e despreparados para lutar pelas sementes da vida comunitária e associativa.

Os dirigentes petistas, incluindo o próprio Lula, têm suas parcelas de responsabilidade na alienação política crescente dos segmentos populares por não entenderem que a gestão de uma sociedade complexa é um desafio muito maior que aquele do horizonte sindical. Assim, o manejo de políticas públicas, como o “bolsa-família”, foi feito não para incrementar o exercício da participação democrática local e municipal por parte das comunidades e grupos familiares, mas para incentivar o consumo e proteger as indústrias de bens de consumo duráveis e semi-duráveis. Certamente, preocupados em fortalecer suas orientações sindicais e aumentar o poder das barganhas salariais, os petistas acreditaram que o aumento do consumo e da renda básica dos mais desassistidos seria o suficiente para assegurar o apoio que precisava a esquerda no poder para manter ampla base eleitoral estabilizando a governabilidade. Ledo engano do sindicalismo de esquerda. O resultado é que a sociedade brasileira está pagando neste momento o preço da apatia social e do desmonte dos mecanismos da democracia participativa que queríamos. A esquerda no poder não entendeu que a construção da cidadania democrática constitui um processo complexo que exige em primeiro lugar o estímulo a uma cultura de solidariedades morais e afetivas que orientem como as comunidades, as famílias e os indivíduos devem decidir coletivamente sobre o que fazer e como fazer para organizar a sobrevivência de todos na vida cotidiana.

O mais grave é que embora o impeachment temporário de Dilma tenha produzido várias mobilizações em defesa da presidente, estas não indicam ainda apontar para um programa consistente para enfrentar o poder conservador e corrupto e sustentar a reconstrução nacional. As duas forças sociais mais importantes na mobilização de uma reação da esquerda organizada não apresentam ainda uma plataforma política conjugada. Por um lado, há de se destacar haver em curso crescimento da mobilização de entidades ligadas ao PT, agora na oposição, como a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e o MST (Movimento dos Sem-Terra). Mas tais reações continuam mais voltadas para a defesa de suas bandeiras sindicalistas e partidárias tradicionais que apresentam forte verticalidade. Por outro, vemos as mobilizações de rua, envolvendo juventude, intelectuais universitários e outros setores das classes médias que se articulam em torno da denúncia do golpe e da contestação do governo provisório de Michel Temer na esperança de anulação do processo de impeachment. Mas ainda não se observa nestas reações as sementes de um programa de restauração politica mais realista e adequado para o enfrentamento do conservadorismo. Dependendo do desenrolar dos acontecimentos, estas mobilizações espontâneas das ruas podem vir a se fusionar numa alternativa política e ideológica mais consistente, ancorando os fundamentos de uma nova aliança política que inclui o sindicalismo mas que possa vir a ter amplitude utópica bem mais ampla.

O fato é que tais reações de sindicatos, movimentos organizados e mobilizações espontâneas são ainda insuficientes para criar um fato político novo capaz de reverter a tendência de retrocesso das conquistas democráticas. A meta de restauração do poder da esquerda via anulação do impedimento e retorno da Dilma não é impossível mas apresenta grandes dificuldades devido a problemas que devem ser sublinhados. Em primeiro lugar, é necessário salientar os altos níveis de rejeição política que ela conheceu progressivamente desde sua reeleição. Segundo dados de pesquisa nacional realizada pela CUT/Vox Populis no mês de abril último a avaliação de Dilma como ruim/péssimo chegava a 59% enquanto a de Temer subia para 62%. Certamente, a fragilidade do governo provisório de Temer tenha contribuído para aumentar sua rejeição e diminuir a de Dilma, mas não parece que esta avaliação ainda tenha mudado substancialmente na medida em que a crise econômica vem se agravando e seu governo tem responsabilidades por esta crise. Assim, em segundo lugar é de se salientar os péssimos números da gestão econômica de Dilma: o PIB (Produto Interno Bruto) caiu 6% entre 2014 e 2015 e continua caindo, a dívida pública representava 57% do PIB no final de 2014 ameaça chegar a 74% em 2016; o desemprego já atinge 11 milhões de brasileiros, e a dívida do tesouro nacional com o sistema financeiro é impagável caso não haja uma negociação séria com os bancos.

Em terceiro lugar, do ponto de vista do apoio do PT a Dilma há dificuldades relevantes a serem lembradas. Há resistências fortes dentro do PT para incorporar ex-ministros de Dilma como Ricardo Bezoini e Jaques Wagner no diretório nacional do partido e há, mesmo, um grupo de deputados petistas que analisam a possibilidade de fundação de outro partido político. Em quarto lugar, deve ser lembrado o perfil psicológico de Dilma, uma mulher honesta e sincera que tem dificuldades de lidar com personalidades políticas ambíguas e egoístas. Assim, diferentemente de Lula que sabia manejar com muita desenvoltura as negociações e barganhas com as elites, Dilma sempre demonstrou resistências para essas negociações “por baixo do pano”. Embora elogiando a impecabilidade moral de Dilma o fato é que se verificou uma deterioração importante entre os poderes executivo e legislativo, contribuindo para gerar a ingovernabilidade política que vemos no momento presente.

É possível afirmar, logo, que há uma ampla perplexidade social e popular perante um quadro de impasse político e de falta de horizontes estáveis a curto e médio prazo. Esta perplexidade ainda não foi canalizada para uma reação política mais consistente na medida em que a bandeira de “fora” Temer e “volta” Dilma não revela constituir um apelo popular amplo e vigoroso pelo receio compreensível que a volta ao passado signifique agravamento da ingovernabilidade. Esta perplexidade toma conta tanto dos que estão do lado de Dilma como de muitos que apoiaram seu impeachment mas que, agora, estão assustados com os rumos conservadores e incertos do presidente interino, Michel Temer, que era o vice-presidente de Dilma e que assumiu o cargo com o afastamento da mesma.

Há, pois, um descompasso entre a intensidade do mal-estar emocional vivenciado por grande parte dos brasileiros e as limitadas reações democráticas oferecidas pelos sindicatos, partidos de esquerda e mobilizações de rua. Além do mais, como foi lembrado, as próprias mobilizações de rua não parecem apontar para a organização de uma força anti-hegemônica poderosa. Talvez, pela ausência – ainda – de uma frente parlamentar de esquerda articulada com os movimentos sociais e sindicais, observa-se que a energia social que vem sendo empregada em favor da resistência ao desmanche da democracia que queríamos ainda são muito limitadas. As manifestações de ruas e de intelectuais contra o golpe são importantes mas não são suficientes para se criar um clima de resistência mais amplo que mobilize os setores populares e que ancore o trabalho de construção de um novo projeto democrático. A própria ideia de golpe que seria explicada pelo fato de Dilma ser afastada sem crime de responsabilidade comprovado não é unanimidade quando se conversa com os intelectuais mais comprometidos com a causa democrática. Há aqueles que dizem, inclusive, não ter havido um golpe (visto que a legalidade constitucional se mantém), mas apenas uma farsa gerada pela manipulação midiática e jurídica do sistema político pelas forças conservadoras. A tese da farsa é interessante pois coloca o problema político do afastamento da presidente da república não apenas como uma violência jurídica, trazendo o debate para o plano das lutas ideológicas e do falseamento estético da realidade política.

O fato é que independente das interpretações – como golpe ou como farsa -, as reações sindicais e partidárias e as mobilizações de ruas têm prazo de validade limitada, caso não se possa constituir pactos políticos e afetivos sólidos para ancorar a construção de programas de ação para o médio e o longo prazo e comprometidos com a democratização da sociedade nacional. Na ausência de pactos políticos e afetivos consistentes as lutas de resistência também se fragmentam e as energias sociais das mobilizações de rua ficam canalizadas pelos sentimentos de simpatia sinceros – mas politicamente controversos – com a figura de Dilma e pela sua dupla dor: da ex-guerrilheira que foi torturada pelo autoritarismo e pela mulher que se vê perseguida pelo machismo. Mas a simpatia com a figura da vítima não necessariamente libera a criatividade social para novos rumos democráticos. Pode apenas reforçar o poder do algoz e o temor dos vitimizados.

A saída deste imbróglio político e emocional passa necessariamente, então, pelas perspectivas de visualização de prioridades políticas a serem defendidas nos horizontes da vida social. Neste nível de especulação intelectual, me parece que haveria três objetivos a serem perseguidos com tenacidade pelo novo pacto de esquerda por apresentarem potencial de canalizar a energia social dispersa. O primeiro deles, é a defesa incondicional da Constituição de 1988 que assegurou avanços importantes para a reforma do aparelho estatal, para a implantação  de políticas públicas inovadoras e voltadas na promoção da cidadania na saúde e na educação e para homologar novos direitos sociais e culturais. Foi a partir desta Carta Constitucional que se organizaram reformas importantes no funcionamento do Estado, gerando novas concepções de políticas públicas e ações descentralizadoras da administração estatal. A partir desta nova Constituição as lutas por direitos sociais, civis, cívicos e ambientais também se ampliaram gerando reconhecimento dos direitos de minorias e de diversidades. Programas ousados como o SUS (Sistema Único de Saúde) – garantindo o acesso universal dos cidadãos a saúde pública e também o atendimento descentralizado das ações de cuidado – apenas têm sentido no interior dos preceitos desta nova Constituição de 1988. Por isso, parece-nos que as mobilizações políticas em favor da preservação e integridade destes avanços jurídicos deve ser objeto de uma aliança ampla das forças democráticas. Sem ela se desfazem grande parte das conquistas sociais e políticas que foram obtidas e que sustentam as lutas atuais por aumento da participação social e política.

O segundo objetivo tem a ver com a implementação de uma ampla reforma política que promova a reorganização do sistema partidário e dos processos eleitorais de modo a restaurar o valor da participação democrática em nível das comunidades e do poder local. Há que se adotar medidas para repolitizar as massas assalariadas e aquelas vulneráveis de modo que possam participar de modo mais ativo e responsável na organização dos sistemas políticos e partidários nos planos local, estadual e nacional. Neste plano, as mobilizações em favor de eleições gerais para reorganização do sistema político e partidário devem ser consideradas seriamente pois somente assim é possível se liberar espaços de atuação para novas lideranças populares, saneando o sistema partidário e legitimando a reforma gerencial do aparelho estatal. Na verdade, é importante sublinhar, isto é tudo que as elites conservadoras que manipulam o voto não querem, na medida em que eleitores mais conscientes de seus votos tendem a definir outras prioridades na hora das eleições. Por isso, esta reforma política deve ser objeto de um amplo debate e mobilização coletiva para poder obrigar as forças conservadoras a retrocederem e aceitarem os projetos de revisão das leis e procedimentos que precisam passar pelo parlamento.

O terceiro objetivo tem a ver com a reorganização dos modelos de desenvolvimento nacional de modo a favorecer o surgimento de economias plurais e diversificadas que minimizem os efeitos do mercado capitalista sobre a atividade econômica da sociedade, retirando as forças dos grandes monopólios e do agronegócio e estimulando a competitividade econômica horizontal e os pequenos negócios. Na reorganização destes modelos é importante se repensar o papel das políticas públicas visto a significativa presença da economia redistributivista estatal na organização da vida econômica e social que, no Brasil, alcança mais de 50% do PIB.. Há que se repensar igualmente as relações entre sistema financeiro e econômico e função social do desenvolvimento de modo a se reorganizar adequadamente os usos das riquezas coletivas como terra, água e investimentos públicos assim como sanear a dívida do estado com o setor financeiro que atualmente é inviável. O fato é que o modelo neodesenvolvimentista adotado pelo PT não cumpriu seu compromisso de redistribuir riquezas e diversificar as atividades econômicas em beneficio da equalização dos direitos de acesso da maioria aos recursos coletivos. Ao contrário, as alianças feitas pelos dirigentes do PT com as forças conservadoras trouxeram muitos benefícios ao sistema financeiro, a grandes empreiteiras e montadoras de automóveis e ao agronegócio e, por conseguinte, poucos benefícios para melhoria efetiva da cidadania dos mais desfavorecidos. A construção de uma utopia pós-desenvolvimentista que valorize o bem comum é, pois, tarefa fundamental e urgente da reação democrática.

As condições gerais para começar esta ampla mobilização voltada para um programa de reconstrução da sociedade nacional e da implantação da democracia ampliada a curto, médio e longo prazo estão dadas. O governo Temer tem uma base de sustentação fragmentada no congresso nacional  que limita suas possibilidades de tomar medidas econômicas e fiscais fortes para enfrentar a crise econômica e a perda de confiança do setor produtivo. As fragilidades do governo Temer são realçadas pelo fato de que vários de seus ministros estão envolvidos na operação “Lava-Jato” e sob a mira da justiça com envolvimentos diretos em escândalos de corrupção envolvendo a empresa brasileira de petróleo (Petrobrás) e com operações de lavagem de dinheiro “sujo”. Por outro lado, Temer sabe que não pode sobreviver politicamente apenas orientado pelos interesses das elites, devendo obrigatoriamente escutar os sindicatos e as ruas para poder se manter no cargo. Sua decisão de recriar o Ministério da Cultura que tinha sido absorvido pelo Ministério de Educação após ampla reação de artistas e simpatizantes, demonstra o que estamos dizendo.

As incertezas do governo de Michel Temer podem vir a ser, então, recursos importantes para a formação de um caldo de cultura adequado para que a energia social mobilizada pelas ruas na resistência ao golpe (ou na resistência a farsa) no curto prazo, possa ser canalizada para objetivos pragmaticamente mais consistentes de médio e longo prazo e voltados para a reorganização dos processos democráticos. E tais objetivos, como dissemos acima, não tem horizontes claros nos sonhos do passado mas apenas na capacidade da vontade democrática progressista de mirar os horizontes incertos do futuro da sociedade nacional. Neste ponto, nossa posição é que se o lema do “fora” Temer e do “volta” Dilma tem certa capacidade de mobilização das ruas, estas bandeiras são, porém, insuficientes para canalizar um amplo leque de solidariedades e de vontades políticas capazes de promover a resolução do impasse político e institucional atual.

As tarefas de pensar de forma realista o crescimento das forças democráticas exige ampla articulação das lideranças políticas de esquerda, de parlamentares, sindicalistas e intelectuais que se aglutinem na definição de um programa consistente e viável capaz de mobilizar a energia social para uma nova forma política e associativa mais solidária e justa. Infelizmente, ainda não estamos observando esta mobilização das forças sociais mais identificadas com os ideais da esquerda democrática com vistas a este programa mais amplo que inclua ações de curto, médio e longo prazo. A intensidade do contexto político manipulado pela mídia conservadora, a desorganização e prisão de lideranças petistas com perspectivas inclusive de penalização de Lula e familiares, as indefinições das forças de esquerda com relação a defesa de metas viáveis são elementos que inflamam as emoções coletivas e enfraquecem as perspectivas de uma reação política e ideológica anti-hegemônica mais consistente.

O caso brasileiro não é isolado devendo servir como alerta para todos os regimes democráticos da América Latina. Há que se fazer uma ampla revisão dos ideais da esquerda democrática que privilegiou historicamente o embate entre sociedade civil e estado (uma representação tipicamente liberal da democracia). A esquerda democrática não soube se preparar para enfrentar o neoliberalismo que traz o mercado como força decisiva para se repensar o que se entende como estado e como sociedade civil. Há que se atualizar os fundamentos teóricos e práticos da democracia participativa que estão presentes em várias tradições do pensamento moderno como, por exemplo, no socialismo utópico francês, no pensamento pragmatista norte-americano  e mesmo naquelas tradições liberais que existiram antes da chegada do neoliberalismo e que propugnavam a liberdade de associação e a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

Nesta mesma direção os fundamentos da democracia participativa na América Latina e no Brasil não pode dispensar as memórias de lutas liberadoras como aquelas do zapatismo, dos movimentos indígenas e negros, dos camponeses, dos sem terras e sem tetos, das mulheres oprimidas e também das mães que se insurgiram  contra as injustiças das ditaduras militares. O momento exige uma nova coalizão das forças simpáticas a uma democracia que queremos e que tem a ver com o restabelecimento da prática democrática participativa e que valorize a vida comunitária e associativa e a responsabilidade dos indivíduos e grupos sociais na construção do fazer cotidiano solidário nos bairros, comunidades, cidades e regiões. Na organização das forças democráticas deve ser lembrado o valor estratégico dos apoios internacionais e latino-americanos inclusive dos movimentos intelectuais organizados que estão repensando o significado da utopia democrática e do próprio sentido ideológico das esquerdas neste século XXI.

Sobre el Autor