A necessidade de preservar a memória histórica e defender o processo de democratização em Brasil e na região
Por José Esteban Castro, Catedrático em Sociologia, Universidade de Newcastle, Reino Unido
Newcastle upon Tyne, Reino Unido, 28 de março de 2016
O processo de democratização em América Latina e Caribe tem entrado numa nova etapa, a qual possivelmente não deveríamos nos apressar a lhe dar nome. Para alguns, a etapa iniciada com o Século XXI constituía um momento pós-neoliberal, um conceito que gerou debate e fortes críticas, entre outras razões porque em vários aspectos importantes a ruptura com o neoliberalismo da década de 1990 não foi tão contundente como o conceito de pós-neoliberalismo parecia indicar. Falar de pós-neoliberalismo era sem dúvida uma legítima expressão de desejos, mais o princípio de realidade impõe uma leitura mais sóbria dos processos que aconteceram nas duas últimas décadas. Embora, como nomear agora a nova etapa que parece querer se instalar marcada pelo ressurgimento de um neoliberalismo agressivo que não oculta seu projeto de atrasar o relógio e repetir a experiência da década de 1990 desmontando as iniciativas de democracia popular-participativa e, em alguns países como Brasil, incluso agitando o fantasma da ditadura como saída a crise política? Não quero atribuir um nome, porque prefiro conservar a esperança de que as ameaças que caraterizam esta nova etapa não logrem materializar-se, que os projetos de sociedade excludente encarnados em ditas ameaças possam ser confrontados e derrotados antes que consigam se estabelecer.
Qualquer seja o nome que dermos a esta nova etapa, é fundamental reconhecer a necessidade de preservar, e em muitos casos reconstruir, a memória histórica e defender o processo de democratização em nossa região, já que incluso os relativamente modestos avanços logrados na época mais recente estão seriamente ameaçados. A situação que se vive no Brasil no momento de escrever estas reflexões é um exemplo suficientemente preocupante, mas de nenhuma maneira trata-se de um exemplo isolado já que forma parte de um claro padrão de transformações nas dinâmicas socioeconómicas e, fundamentalmente, políticas da região latino-americana e caribenha. Neste sentido, é preciso manter viva, ou reconstruir onde seja necessária, a memória histórica dos processos sofridos por nossos países desde a segunda metade do Século XX, notoriamente as ditaduras civil-militares, a imposição de democracias tuteladas, restringidas, e a subordinação ao autoritarismo do capital financeiro globalizado. É importante lembrar que toda tentativa de insubordinação a ordem dominante imposta por esses processos tem sido fortemente resistida e, que em casos de processos que ameaçam com transformar minimamente o status quo, os intentos têm sido sistematicamente boicoteados ou diretamente desmantelados.
Quero destacar aqui alguns exemplos notórios, como o intento de cancelar ou quando menos retirar apoio aos julgamentos dos responsáveis pelos crimes de Estado cometidos pelas ditaduras da região, notoriamente por parte do governo dos Estados Unidos, mas também por governos da Europa. Argentina conseguiu que numerosos responsáveis da ditadura iniciada em 1976, como o Geral Jorge Rafael Videla, fossem julgados e condenados e terminaram seus dias na cadeia, mais uma grande maioria dos responsáveis por crimes de Estado na região tem conseguido evitar ter que comparecer ante a justiça, como ocorreu especialmente no caso do Geral Augusto Pinochet no Chile. A hipocrisia dos governos das democracias ocidentais estabelecidas continua sendo muito conspícuo neste sentido: para dar um exemplo que ganhou destaque recentemente, o grau de prioridade e esforço internacional dado à aplicação de justiça em casos de corrupção como o da Federação Internacional de Associações de Futebol (FIFA) não tem equivalente na administração de justiça aos responsáveis por crimes de Estado latino-americanos e caribenhos, um processo que é frequentemente desvalorizado, se não diretamente negado ou incluso obstaculizado. Como ficou notoriamente registrado na visita do Presidente Barack Obama a Argentina neste mês de março de 2016, se trata aos crimes de Estado que ocorreram com o apoio explícito ou implícito do governo dos Estados Unidos como ocorrências lamentáveis, que devem ser sujeitas a revisão crítica, mas que devem ficar no passado já que o importante seria pensar no futuro, que evidentemente é pensado como um futuro em que Estados Unidos voltem a ter um papel hegemônico na região. No entanto, este não é um tema do passado, já que o governo norte-americano quando menos tem tolerado intervenções golpistas em nossa região incluso durante o período do Presidente Obama. Este tem sido notoriamente o caso dos golpes que destituíram os presidentes Manuel Zelaya de Honduras em 2009 e Fernando Lugo de Paraguai em 2012. Contribuir a reverter estes golpes contra o processo democrático regional não tem sido uma prioridade para o establishment da democracia formal internacional. O respaldo expressado pelo Presidente Obama durante sua visita ao governo do Presidente Mauricio Macri na Argentina, virtualmente sem condicionamentos, deve também ser analisado nessa perspectiva, tomando em conta a política do novo governo argentino que procura criminalizar o protesto social, desprestigiar e se possível desmantelar as organizações de direitos humanos, e suspender os julgamentos pendentes aos responsáveis pelos crimes de Estado do período 1976-1983. Outro exemplo para ilustrar a necessidade de preservar e reconstruir nossa memória histórica nas condições que prevalecem na região é o impacto prolongado das reformas neoliberais implementadas desde a década de 1970 (Chile) e que tiveram seu momento de grande expansão na década de 1990. O endividamento massivo de regiões inteiras, a liquidação em grande escala de empresas públicas por meio da privatização, com muita frequência implementada por meio de processos marcados pela corrupção público-privada tolerada em nome da ideologia predominante que predica a primazia do mercado sobre a Política, assim como o aprofundamento extremo da desigualdade e de suas consequências, justificadas como uma necessidade. Seria de esperar que a lembrança das consequências catastróficas destas políticas sobre nossas sociedades assim como dos esforços notáveis, e internacionalmente reconhecidos como exitosos, realizados por nossos países para reverter essas consequências, reduzir a pobreza extrema, e recuperar um mínimo nível de soberania estaria muito fresco nas populações de nossos países, sobretudo em casos como Argentina e Brasil. No entanto, a situação que vivemos neste momento sugere que é urgente a reconstrução da memória desses processos.
Neste sentido, a mensagem que tenho recebido em intercâmbios com acadêmicos, estudantes universitários e outros profissionais de distintas regiões de Brasil durante este mês de março de 2016, reflete a gravidade da situação. Anexo aqui algumas das frases mais destacáveis:
“A situação aqui no Brasil está se deteriorando rapidamente. Para mim, não está claro o que vai acontecer ao final. Em alguns momentos, tendo a ser muito pessimista. Creio que há uma força protofascista muito forte. Só não sei se poderá se tornar uma onda irresistível”.
“Vejo um debate limitado e descolorido de alguns de nossos intelectuais. O Brasil pegando fogo, a microcefalia, e muitos sem nenhuma cor. Aliás, Cássia Eller dizia em música ‘milhões de frases sem nenhuma cor’”.
“Como se diz aqui «a coisa está feia» e tem atingido a todos. Pessoalmente tenho amigos ligados à CUT [Central Única dos Trabalhadores] que já sofreram diversas ameaças e cogitam sair do país, dependendo do futuro que se desenhe com a onda de ódio que se vê por aqui. Todos nós (eu e amigos), já fomos ofendidos na rua. Neste último 18 [de março], quando houve manifestação pró-governo, uma colega e eu ouvimos de uma pessoa na rua que «deveríamos tomar um tiro»…e coisas assim…o clima está bastante tenso. Estamos realmente torcendo para que o momento de repressão que se viu décadas no Brasil atrás não se repita.”
Outra colega enviou a gravação em áudio da aula de uma professora de Direito da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), alertando a seus estudantes sobre a necessidade de revisar a historia verificar as similitudes entre o processo que vive o pais e os momentos prévios ao golpe civil-militar de 1964, especialmente o papel central que tiveram os meios de comunicacão massiva na geração do golpe (sobre isto, ver, por exemplo, a nota publicada pela revista Carta Capital http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/as-historias-de-1964-ainda-hoje).
Diante destes acontecimentos, queremos expressar nossa solidariedade com as forças progressistas do Brasil, e com todas aquelas pessoas comprometidas com a preservação e aprofundamento do processo de democratização. Não ficam dúvidas sobre os graves erros cometidos no Brasil e outros países da região pelos próprios atores que em nome de projetos progressistas contribuíram a reproduzir mecanismos importantes de um sistema social que tende a concentração da riqueza e o aprofundamento da desigualdade. No entanto, não se pode reduzir a análise destes processos a sua dimensão, por assim dizer, policial, como evidentemente se pretende fazer, sobretudo através dos meios de comunicação massiva, frequentemente amplificados no exterior por seus aliados, que compartilham um ódio visceral pelas experiências de democracia popular-participativa implementadas nas últimas duas décadas.
Neste sentido, considero que existe um grave perigo de perder de vista o caráter fundamental da confrontação que estamos vivendo. Não é uma confrontação entre “políticos e empresários corruptos” associados ao governo de turno, por um lado, e os “representantes e defensores da justiça e da democracia” pelo outro. O carácter fundamental da confrontação é político, entre projetos de país incompatíveis. Assistimos ao intento de reinstalar com toda sua força políticas excludentes, fundadas no principio da desigualdade, justificada como necessária para a manutenção da ordem social. Na Argentina isto está acontecendo, mas por meio de um processo eleitoral que permitiu ao governo de turno obter a legalidade formal necessária para tentar reinstalar o modelo neoliberal, a iniciar pela dispensa massiva de milhares de trabalhadores entre as primeiras decisões do governo, e desmantelar boa parte dos avanços positivos feitos desde o ano 2003. No Brasil, muito claramente, o intento de reinstalar um modelo político excludente se está dando com um carácter muito mais violento, intolerante, com tons racistas e classistas. Os meios de comunicação massiva tem se convertido em ativistas de tempo completo que excluem a possibilidade de debate democrático e transmitem uma mensagem unidirecional, em fluxo permanente, convertendo a política brasileira num grande show do Big Brother onde os atores são os juízes, os políticos, os empresários, a policia, e os próprios jornalistas que articulam uma mensagem não dissimulada: a decisão de terminar com o governo democraticamente eleito da Presidenta Rousseff já foi tomada, somente resta executar.
Desde outra perspetiva de análise, nas últimas duas décadas o processo de democratização regional esteve marcado por uma reacomodação dos países da região no contexto internacional. Por uma parte, esta reacomodação esteve marcada por um avanço nos graus de autonomia em nível nacional e regional com respeito aos países centrais, sobretudo na América do Sul. Este grau de autonomia crescente, além da retórica, tem acontecido no marco do aprofundamento e desenvolvimento das relações capitalistas, e tem incluído a emergência de autonomias capitalistas no plano internacional, notoriamente Brasil. Além disso, o aprofundamento e desenvolvimento de relações capitalistas é um dos mecanismos que mantem e gera desigualdades sociais estruturais, incluso nos casos em que se implementam políticas redistributivas, paliativas, que procuram reduzir a pobreza extrema e promovem os direitos sociais. A democracia capitalista, ainda nas suas formas mais benignas, popular-participativas, se funda na acumulação privada, concentrada, e não na distribuição da riqueza social. Por outra parte, outras regiões de América Latina e Caribe tem visto o aprofundamento de suas relações de dependência, a redução de seus níveis de autonomia, sobretudo em relação aos Estados Unidos e a União Europeia. Uma expressão clara desta dinâmica de aprofundamento da dependência é a emergência da Aliança do Pacífico, composta inicialmente por Chile, Colômbia, México e Perú, que abertamente propõe um programa neoliberal, privatista, que rejeita a necessidade de políticas sociais e desqualifica as experiências de democracia popular-participativa como “populistas”. Em distintos documentos feitos públicos pela Aliança, se defende o argumento de que devem ser abandonadas as políticas “populistas” implementadas nos países da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA) e do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), e se deveria adotar o modelo chileno, centrado na preeminência das relações mercantis. O governo do Presidente Macri na Argentina se posiciona como uma possível ponta de lança da expansão do programa da Aliança do Pacífico, pelo menos em América do Sul. No eventual caso de que o golpe institucional que está sendo gerado no Brasil contra o governo democrático da Presidenta Dilma Rousseff prospere, é de se esperar que a captura do poder político por parte dos setores posicionados a direita no espectro político consolide o debilitamento da cooperação Sul-Sul e o aprofundamento das reformas neoliberais com o consequente crescimento da desigualdade e da pobreza extrema. Apesar de que estas possibilidades já são suficientemente preocupantes por seu impacto potencial sobre os setores mais desfavorecidos da sociedade, a situação é ainda mais grave em relação a processo de democratização no Brasil e na região. Os sinais emitidos pelo novo governo argentino e pelas forcas que procuram destituir ao governo da Presidenta Rousseff no Brasil não deixam dúvidas sobre o potencial retrocesso nas políticas de proteção aos direitos humanos, do abandono dos julgamentos aos responsáveis pelos crimes de Estado, e da consolidação de práticas antidemocráticas, intolerantes, que ameaçam com reverter aspetos importantes do processo de democratização regional.
Devo repetir que não se trata de ignorar os graves erros dos governos nominalmente progressistas, que incluso como no caso de Brasil começaram a virar à direita num intento de apaziguar as forcas que procuram se reinstalar no comando do processo político. No entanto, é preciso recuperar a memória histórica e impedir que se imponha ao conjunto da população a sensação da inevitabilidade de uma saída golpista a crise política e econômica. É também preciso unir as nossas vozes com a das forcas sociais no Brasil e na região que denunciam o estado da situação e lutam por preservar e aprofundar o avanço do processo de democratização na região. As mobilizações massivas realizadas nos últimos dias tanto em Brasil como na Argentina em defensa do processo de democratização e contra o retorno às políticas excludentes e ao autoritarismo, são um chamado de atenção aos setores que querem desmantelar os avanços logrados e nos brindam uma mensagem alentadora: a memória histórica está viva e existem amplos setores da população que continuam sua luta pela construção de sociedades mais igualitárias, genuinamente democráticas.