O Brasil virando a página da história

O Brasil virando a página da história

Por Paulo Henrique Martins

Será que o Brasil está virando a página da história? Os fatos demonstram que sim embora não tenhamos clareza sobre os resultados políticos, econômicos, jurídicos e culturais desta virada de página. Muitos cientistas sociais buscam decifrar a crise da conjuntura para encontrar luzes no final do túnel. Mas estas reflexões de conjuntura podem se tornar um esforço inútil caso não possamos fazer uma análise estrutural e histórica mais ampla dos eventos e que seja capaz de dar conta da natureza do poder e da dominação pós-colonial.

O fato é que os rumos dos acontecimentos escapam, em geral, ao que previam os manuais sociológicos o que explica a atração pelas análises conjunturais e dificuldades de avançar com aquelas mais estruturais. As teses teóricas tradicionais sobre o desenvolvimento do capitalismo na periferia partiam da existência de duas crenças que se mostram problemáticas: uma delas é a da racionalidade mercadológica que guiaria as decisões estratégicas da burguesia nacional; a outra, a da racionalidade administrativa e legal que inspiraria a burocracia estatal. A crença no papel redentor da burguesia nacional que animou muitos partidos de esquerda no século XX continuou a prevalecer entre muitos intelectuais e economistas das esquerdas até a pouco tempo. Tal crença ajuda a explicar os esforços do PT (Partido dos Trabalhadores) de financiar através de bancos públicos como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) o crescimento econômico e a expansão dos negócios, inclusive no plano internacional, de grupos econômicos nativos como a Odebrecht e a JBS entre outras, que estão envolvidas organicamente nos escândalos da corrupção investigados pela “Lava Jato”.

Se saímos do calor da análise conjuntural e voltamos para a análise estrutural que nos permite observar ciclos de média e longa duração como nos sugeria Norbert Elias, observamos que a crítica teórica, inclusive aquela pós-colonial mais consequente, não conseguiu desenvolver um entendimento mais profundo da natureza do poder oligárquico na América Latina e no Brasil. Há outras racionalidades na organização dos sistemas de dominação pós-colonial fundadas nas ideias de privilégios, saques e enriquecimentos com fins de ostentação que submetem a antiga lógica burguesa voltada para a equação entre lucro e investimento produtivo.

Esta crítica vale também para este autor que escreveu ainda nos anos 80 uma tese de doutorado na França sobre o poder oligárquico. Confesso que a amplitude dos processos de modernização do poder oligárquico nas últimas décadas me surpreendeu, mesmo eu estando atento a natureza da lógica oligárquica. Um aspecto interessante é o de observar que a imbricação dos interesses envolvendo as oligarquias conservadoras e a burguesia financeira internacionalizada demonstram que o dilema entre modernização e conservação era falso e que o capitalismo colonial foi e sempre será conservador no sentido de assimilar com dificuldades os movimentos sociais reformadores. Este é um tema que as análises marxistas de classes e as liberais utilitaristas têm dificuldades de detectar. Tanto a excessiva ênfase do marxismo sobre a exploração econômica como a do liberalismo a respeito da magia do livre movimento do mercado deixou de lado o essencial, a saber, que no contexto do imaginário oligárquico os interesses econômicos são subordinados a interesses mais amplos pelo poder, pelo prestigio e pelo enriquecimento ostentativo. Nesta direção, a abordagem weberiana demonstra ser muito mais fértil por propor diferentes motivações de organização do sistema de poder que podem contemplar a dominação econômica mas igualmente os motivos afetivos, tradicionais e carismáticos.

As teorias prevalecentes sobre a natureza do estado, a liberal e a marxista, não dão conta da complexidade dos sistemas de poder presentes nas realidades das sociedades pós-coloniais. A visão liberal faz uma distinção entre as esferas do mercado e a do estado considerando que esta última deveria ter predominantemente a função de sistema regulador das práticas mercantis. A visão marxista parte do princípio que a natureza do estado é burguesa. Mas considera igualmente que este estado é uma cena de lutas de classes antagônicas cujos resultados hipotéticos poderia ser a transformação da democracia burguesa em uma democracia de massa.

Ambas as leituras são parcialmente corretas mas são insuficientes para explicar a natureza complexa do poder oligárquico. Este apenas em parte se rege por uma posição classista. Sua natureza é mais complexa na medida em que está vinculada ao comportamento cultural das grandes famílias de proprietários. O poder oligárquico se faz presente nas corporações burocráticas mas igualmente nos sistemas familiares, políticos, econômicos, étnicos, religiosos e culturais e também nas memórias da colonização organizando uma subjetividade difusa que atravessa todo o corpo social. A organização do poder econômico é dispersa e se ancora em vários sistemas derivados da colonização. Cada um deles possui sua relativa autonomia embora todos se protejam sob o manto da filiação étnica e familiar. Há a economia extrativista e agroexportadora, há a economia bancária, há a economia dos importadores de manufaturas, há a economia do mercado interno de produtos de bens industriais, há a economia dos pequenos produtores de bens agrícolas e de consumo doméstico e há a economia redistributivista estatal. Nesta perspectiva a ideia defendida pelos economistas de que sociedades como a brasileira constituem modelos econômicos unificados pelas forças do mercado no território nacional é uma ilusão. Há várias economias cada qual se reproduzindo na sua lógica específica. Assim, a palavra crise econômica deve ser colocada entre aspas na medida em que ela não atinge nem as atividades do agronegócio, nem a dos bancos nem a dos importadores de manufaturas. A crise atinge sobretudo as economias do mercado interno e, por conseguinte, a economia redistributivista estatal cujas principais fontes de captação de recursos depende dos impostos pagos pelos assalariados e consumidores.

A crise da economia redistributivista estatal impacta, por sua vez, nas estruturas de emprego e renda dos trabalhadores. A mídia, por seu lado, busca demonstrar ter a crise um caráter eminentemente econômico colocando os elementos políticos como derivações da desregulação econômica. O debate deixa assim de focalizar as questões essenciais ligados a cultura oligárquica pós-colonial na tentativa de manipular a opinião pública e esconder a trama central relacionada com os modos simbólicos de exercício do poder e da dominação. A verdade da crise é o contrário. Ela é em primeiro lugar política, burocrática e cultural para apenas em seguida ser econômica. O sistema administrativo central e a economia redistributivista estatal são atravessados por diferentes interesses corporativistas e a questão social é vista não como uma condição da vida republicana e cidadã mas como um problema de segurança nacional.

O que une os vários poderes oligárquicos é o fato que todos os setores se voltam para o sistema administrativo central, que chamamos de estado, que aparece como o agente estratégico para o financiamento do “desenvolvimento nacional”. Considerando a importância deste agente na captação de relevantes recursos financeiros com vistas a alimentar a reprodução do patrimonialismo ele constitui o epicentro da crise geral e também da sua solução. Nos períodos de fartos recursos financeiros no plano internacional e nacional, o sistema estatal amplia sua capacidade de financiamento como um organismo fisiológico que estende suas ramificações de forma desordenada para suprir as demandas dos seres parasitas. Nos momentos de diminuição dos financiamentos externos e de esgotamento da capacidade do estado de distribuir recursos para as elites oligárquicas, como no contexto atual, as pressões intra-elites aumentam. Isto gera desorganização dos mecanismos de regulação do sistema social e político, o que vale para as negociações realizadas em diversos níveis: federal, estadual e municipal.

O enfraquecimento da capacidade do sistema estatal continuar financiando a reprodução parasitária do poder oligárquico como um todo gera contradições importantes acirrando a disputa inter-elites pela apropriação dos recursos financeiros necessários para a sobrevivência da ordem patrimonialista. As reações das elites oligárquicas ocorrem no sentido de redirecionar os recursos financeiros disponíveis sob responsabilidade do agente estatal para a manutenção do pactos das elites, o que implica na adoção de medidas fiscais que penalizam as despesas com investimentos e programas sociais. Mas as pressões das oligarquias para manter o controle sobre os recursos estatais constituem uma ameaça efetiva para a manutenção da ordem social e política o que leva parte das elites administrativas, sobretudo as ligadas ao judiciário, a reagirem por se sentirem ameaçadas pelas perspectivas sombrias de desorganização dos fundamentos do regime republicano e da ideia de segurança do território nacional e de controle populacional.

Então a crise do poder oligárquico é centralmente política e cultural e secundariamente econômica. A crise revela as perspectivas de desorganização de um sistema cultural oligárquico que foi forjado no bojo da colonialidade e no qual a diferença liberal clássica entre público e privado é pouco relevante. A desorganização de parte das atividades econômicas que a mídia chama de “crise econômica” resulta das tentativas das oligarquias de reajustarem os fundamentos culturais do sistema de poder por mero instinto de sobrevivência. Assim, o sistema de poder central encontra dificuldades de se reproduzir pois são reais os perigos de desmonte da capacidade do agente administrativo central, o estado, diminuindo sua atuação como financiador do conjunto das elites oligárquicas.

Assim, a crise do poder oligárquico é primeiramente cultural e política e relacionada com as dificuldades de manutenção do status étnico das elites e das disputas pelo controle dos recursos produzidos pela economia redistributivista estatal. A crise política se torna crise institucional pelo acirramento dos conflitos envolvendo as diversas corporações burocráticas. E a crise se torna constitucional quando o aparato legal perde sua força coercitiva devido às contestações diversas oriundas das reações oligárquicas, por um lado, e dos movimentos sociais, por outro. Neste contexto, os partidos políticos que funcionam tradicionalmente como mecanismos de legitimação do poder oligárquico também perdem suas funções ideológicas e de canalização dos processos de redistribuição via favores e negociações particulares. A ameaça de desmonte do estado significa a ameaça concreta de desorganização do sistema de poder que tem bases fora deste estado impactando, por conseguinte sobre os mecanismos de controle e de dominação das elites sobre o território nacional e sobre as populações ai existentes.

As perspectivas de dissolução do regime republicano que constitui o véu ideológico central na reprodução do poder oligárquico contribuem, por outro lado, para gerar reações das corporações burocráticas mais sensíveis com a missão de manutenção da ordem no território nacional. Assim, a grande contradição que vive a sociedade brasileira hoje – o que pode ser ampliado para incluir muitas sociedades latino-americanas – é entre o ideal de um regime republicano liberal que busca equalizar a participação de todos os cidadãos em torno da busca do bem público, por um lado, e a realidade de um regime republicano oligárquico que sustenta o discurso do republicanismo para poder preservar os mecanismos de apropriação dos recursos coletivos por uma elite que é na sua essência antirrepublicana, por outro. As consequências são importantes em termos de apropriação e distribuição das riquezas materiais e simbólicas da sociedade nacional trazendo tensões políticas e aumento do mal-estar social.

A contradição entre forma e conteúdo do republicanismo gera reações corporativas importantes dentro do sistema estatal levando a certa judicialização do poder, isto é, o sistema judiciário passa a intervir mais diretamente nos sistemas legislativo e executivo no esforço de conter a desorganização sistêmica em curso. Isto já aconteceu na crise de 1930 com a presença do “tenentismo” que era um movimento conduzido por jovens militares que reagiram contra as oligarquias econômicas e políticas, tomando o poder em nome da moralização do sistema. Vemos isto se repetir hoje com outros elementos através das ações dos “juízes” contra a corrupção. Inspirados pelas memórias do caso italiano das “mãos limpas” estes juízes buscam se aproximar da mídia e da opinião pública para se legitimar politicamente no embate com as oligarquias políticas e econômicas. As perspectivas são incertas. Mas a retrospectiva histórica demonstra que o objetivo final é restabelecer o papel do agente estatal com principal fiador da segurança nacional.

O fato novo é que a dicotomia tradicional entre direita e esquerda baseada nas ideologias liberais e marxistas perde força frente o avanço de uma luta pela moralização do poder em geral que reflete as reações das corporações burocráticas e jurídicas. A polarização ideológica sai do campo da luta econômica para a luta moral. Isto tem um lado bom e outro ruim. O ruim é que este contexto pode dar margens para o surgimento de novos tipos de populismos que se sobrepõem aos sistemas representativos e políticos tradicionais reforçando regimes de poder autoritários. O lado bom é a possibilidade de reformatação do sistema de poder pós-colonial com a emergência de partidos e lideranças mais antenadas com os sistemas sociais complexos e abertos da atualidade global.

Enfim, o caso brasileiro não é isolado. Ele reflete algo que acontece em muitos outros países da América Latina e do mundo. O caso brasileiro somente emergiu com este destaque midiático e político devido a aprovação pelo Congresso Nacional do dispositivo da delação premiada que obriga os grandes criminosos a delatarem os fenômenos de corrupção para se livrarem das grades, o que constitui uma grande humilhação para as elites oligárquicas que se sentiam acima da lei sancionada e dos valores coletivos. Muitos parlamentares lamentam o fato de não terem rejeitado na época esta mudança legal que deu importantes poderes às oligarquias jurídicas. Este foi o erro central das elites oligárquicas em geral e que está ameaçando a reprodução deste sistema de inspiração colonial. Agora, a página do Brasil está virando. Os rumos são incertos mas um fato é incontestável: a realidade do poder colonial tem que ser passada a limpo pois ela não comporta mais as tensões complexas destas sociedades individualizadas do século XXI.

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